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Pelotas e RS

Relembrando o loteamento Mauá

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Conheci o loteamento pelotense do Mauá. Aquele lugar distante onde a menina K., de cinco anos, foi morta por bala perdida. Levado por um amigo, atravessei os trilhos do trem. Para chegar ao destino, amos pelos bairros Simões Lopes e Ceval, do lado de lá da malha ferroviária.

Olhei em volta: cães e cavalos soltos nas vias. Casebres, alguns em ruínas. Varais ao léu. Lixo empurrado pelos ventos a descampados. Quase ninguém nas ruas. Em certo ponto a estrada de ferro se torna sinuosa e se confunde. Os trilhos trazem perguntas clássicas. De onde viemos? Para onde vamos? Onde estamos mesmo agora?

Eu soube que, de segunda a sexta, as crianças do Mauá se equilibram numa improvisada pinguela de madeira feita por moradores. Olham pros lados e am sobre os dormentes de mãos dadas. Fazem assim para poder frequentar as aulas, depois que o governador fechou a escola do Mauá. Estudam agora na escola do Simões, também do governo estadual, onde uma fila de coloridas letrinhas ondulantes em um cartaz recebe o visitante assim: “SEJAM BEM VINDOS”.

O prédio é um pouco como as evolutivas letrinhas. Apesar dos calorosos esforços da recepção, sua precária estrutura não nos convence de poder se sustentar muito tempo. Tudo se agravou depois que vereadores aprovaram a cobrança da água por consumo. A conta, então de R$ 50, subiu para R$ 1.000 mensais. Já a verba de manutenção se manteve no mesmo valor, de R$ 3.000 por mês.

Os baixos salários dos professores e da direção continuam atrasados. O numerário dos educadores pinga em conta-gotas, apesar das cobranças do cartão BanriCompras. Bem-vindos à realidade!

O menino A., irmão de K., também morreu de tiro, manejando a arma de um tio. O garoto estudava na escola do Simões. A polícia suspeitou que talvez não tenha se matado porque a arma era uma espingarda, difícil de uma criança manejar. O tio, de 13 anos, a mantinha em casa porque estaria envolvido com drogas, depois de ter abandonado os estudos. Nunca se soube.

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A colheita macabra dos irmãos ocorreu num intervalo menor que o período de uma lua. Professora da escola há 10 anos, Lurdes contou que A. foi só um dos 18 alunos que ela viu morrerem ao longo da última década. Todos perdidos, segundo ela, em situações ligadas ao tráfico. Brigas de gangue e acidentes com armas de pais traficantes ou de pais que as mantêm em casa para se defender daqueles, ao alcance da curiosidade das crianças.

“Depois do enterro, continuei chorando. A noite toda”, falou a professora. Ela continua fazendo o papel de psicóloga e orientadora. Uma segunda mãe de alunos cujos pais os abandonam à própria sorte. “Alguns colegas não entendem porque me envolvo emocionalmente com as crianças. Não adianta dizer que ei pelas mesmas dificuldades deles”. Enquanto fala, seus olhos procuram permanentemente contato. Como se as palavras não fossem suficientes.

Lurdes ou a vida no bairro. Quando era menina e estudava na escola onde hoje dá aulas, muitas vezes o primeiro lugar que visitava ao chegar ao colégio era a cantina. A. fazia como ela. Sem a refeição de casa, sua primeira necessidade era matar a fome.

A acolhida à procura ansiosa pela cantina fora dos horários devidos se tornou um gesto humanitário. Já a escola, uma espécie de Cruz Vermelha. Quando faltam alimentos, alguns professores pedem ajuda aos moradores. Por vezes eles próprios trazem mantimentos destinados originalmente às suas famílias. “Dividimos a nossa comida com eles porque consideramos os alunos nossos filhos também”, diz Lurdes.

Algumas crianças que vi denunciam subnutrição. Sinais como a falta de brilho nos cabelos. Rostos que lembram órfãos dos livros de Dickens.

O amigo também estudou na escola do Simões. Conhece todos ali. Fez festa para as crianças. Comeu arroz de leite com elas na cantina. Brincou com professoras. Beijou a cozinheira, que respondeu com sorrisos.

A visita à escola ficou para trás.

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A caminho do carro na rua, o amigo apontou o dedo pra cima. “Quando era criança, eu brincava de subir naquela chaminé”. Era uma torre alta, num terreno próximo. Daquelas com escadinha rente, margeando a estrutura. Pertencia a um engenho de arroz. Há muitos anos o engenho fechou as portas. Restou como um escombro. Nascido e criado no Simões, o amigo hoje faz doutorado. Escalou a escadinha até o topo.

Antes de irmos embora, fez questão de me levar ao bar de um amigo de infância para abraçá-lo e jogar conversa. Ali molhamos a garganta. Um pequeno grupo comentava as mortes recentes. ou ainda na casa de uma tia, irmã de sua mãe, no Simões. Uma senhora de cabelos brancos e pele morena, curtida. Ela ajudou a criá-lo.

Se o Simões e o Ceval são ermos e hostis, o Mauá é um lugar esquecido. Uma espécie de Terra no Nunca que ninguém quer visitar.

Caminhamos um bom tanto por um circuito de estradinhas de terra. É ali que brincam, acordam e adormecem as crianças do lugar. Do outro lado dos comboios de vagões, a escola do Simões é para elas o paraíso. Em todo canto há súplicas no ar, como as letrinhas coloridas saudando o visitante com boas-vindas na escola do Simões.

* Publicado originalmente em 2017.

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Jornalista e escritor. Editor do Amigos de Pelotas. Ex Senado, MEC e Correio Braziliense. Foi editor-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Atuou como consultor da Unesco e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Uma vez ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo, é autor dos livros Onde tudo isso vai parar e O fator animal, publicados pela Editora Lumina, de Porto Alegre. Em São Paulo, foi editor free-lancer na Editora Abril.

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Pelotas e RS

Conexão Tambury – Pelotas

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Agora que Anthony está viúvo, emborcou na depressão. De repente a vida perdeu o sentido, bem como o trabalho que faz. Ele é repórter na Gazeta de Tamburi, cidade tão pequena quanto pobre em fatos de expressão que justifiquem a existência de um jornal diário impresso.

Para esquentar a mornidão do noticiário, ele é obrigado pelo patrão a escrever sobre pautas que os leitores sugerem e, em geral, envolvem a si próprios como personagens na notícia. Coisas como o caso de um morador que toca saxofone soprando o instrumento com o nariz. Ou o da moradora cuja parede de casa desenvolveu uma mancha que lembra ‘misteriosamente’ a face de Jesus. Matérias assim, prosaicas. Porém que os habitantes gostam de ver publicadas, pelo que, em retribuição ao reconhecimento, assinam o jornal, audando-o a manter-se vivo.

A cidade em que moro não é exatamente como a fictícia Tambury da série inglesa After life. Para começo, existe. Fica no sul-sul do Brasil, a um par de horas prudentes de carro até o Uruguai, parece uma lágrima pingando do mapa e não é tão pequena quanto. É um pouco maior. Porém, assim como em Tamburi, as notícias por aqui se repetem e repetem como os cavalinhos de um velho carrossel.

O Sol brilha. Domingo tem maratona do Sesc. A chuva cai e inunda. Autoridades sobrevivem de revender progresso. A Lua aponta de noite. Verbas de restauração arquitetônica de prédios tombados são liberadas. A umidade embolora até os nervos. Para alegria da indústria de preservação, as restaurações não duram três anos. Corações sentem saudade de épocas menos opacas e, o vazio, nós o preenchemos incensando personagens mais ou menos ilustres. Todos os dias pelo menos uma pessoa morre de fato na cidade. Já a maioria de nós procura se dar bem com todos antes que seja tarde, inclusive a imprensa, alheia ao seu papel original de fiscalizar o poder público; pelo contrário, dele se financiando com mão frouxa.

Com o correr dos anos, que aqui parecem ar mais rápido por iguais, tudo se torna familiar, até as excentricidades. Um morador local conhecido como “Megafone ”, por exemplo. Ele não fala. Ele se pronuncia – sempre aos berros – até quando cochicha, concentrando, em sua voz de galo rouco, a ampla indignação com as auroras impossíveis, com a matação do tempo numa terra que soa carente de validação, daí que a tudo edulcora, sem distinção, sem mérito indiscutível. Entre outros excêntricos, há também um gigante de chapéu verde que toca cavaquinho na rua, materializando uma metáfora.

Visto de longe, o músico dá a impressão de que, transido por terrível comichão na barriga, ele a coça desesperadamente, o que combina à perfeição com as quinas da cidade, a poesia dos periféricos e a urgência por beleza. O gigante insiste em embalar a vida com música. Ocorre que sua caixa de coleta, pousada rente ao seu posto num banco do eio, a os dias cheia de ingratidões, o que, aliás, é outra não novidade por aqui. Mesmo assim, ele dá-se à vista, embora sem Sol, em gélido ar, decidido a levar adiante seu frenesi, aquecendo culturalmente o nosso Sul. Excêntricos. Eles são a carne viva da sociedade. Sua expressão última e verdadeira.

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Há uma história dos anos 70, uma joia do espírito produzida pela nossa inteligência, que expressa – com exceções – uma verdade dolorida sobre nós. Uma constatação sabiamente embalada em humor, essa faculdade vital, por suavizar os dramas, balancear a realidade e evitar que enlouqueçamos. Ela envolve um costureiro e uma noiva.

M. era famoso, sobretudo pelo manejo de tesouras verbais. Terminando de provar no espelho o vestido de casamento que ele confeccionara, a noiva verberou: “Acho que ficou mais ou menos”. M. reagiu: “Aqui em Pelotas tudo é mais ou menos. Eu sou mais ou menos. Tu és mais ou menos. O vestido é mais ou menos. De modo que ficou perfeito”.

Eu mais ou menos não me conformo com isso, embora minha inconformidade seja tão inútil quanto tocar sax com o nariz. Quase ninguém em minha terra parece interessado, de fato, na música. Apenas em sobreviver. Tudo piora quando o dia nubla e a chuva cai.

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Pelotas e RS

Início das obras do novo Hospital Escola da UFPel completa 30 dias

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Há 30 dias foi dado mais um o importante para a construção do novo Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (HE-UFPel), vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Após a implantação do canteiro de obras, no mês de abril, teve início na etapa de preparação do solo, marcando o começo da construção de um complexo hospitalar, moderno e estruturado, que promete transformar o atendimento à população e qualificar ainda mais o ensino na área da saúde.

O início dos trabalhos concentrou-se na preparação da área, com o fechamento do perímetro do terreno, retirada de árvores necessárias para a implantação do projeto e início da terraplenagem, em 12 de maio, etapa essencial para garantir a estabilidade da futura edificação. A previsão é de que a obra seja concluída em 36 meses, com entrega estimada para o primeiro semestre de 2028.

No último fim de semana foi iniciada demolição da estrutura de vigas e colunas localizada na parte de trás do prédio do Ambulatório Central do HE-UFPel. A demolição dessa área será realizada somente aos fins de semana, para não impactar no funcionamento do Ambulatório.

A construção do novo HE está sob responsabilidade do Consórcio Novo Hospital Escola Pelotas, composto pelas empresas LACA Engenharia (representante oficial do consórcio), CDG Construtora e Multisul Engenharia — todas com experiência consolidada em obras de grande porte no setor público e hospitalar. A próxima fase será o início das fundações, previsto para cerca de 15 dias após o término da terraplenagem.

A obra está sendo monitorada de perto por equipes técnicas do Setor de Infraestrutura Física do HE-UFPel, em conjunto com o Serviço de Manutenção Predial, Projetos e Obras, ligado à Diretoria de istração e Infraestrutura da Rede Ebserh.

As equipes acompanharão cada etapa para garantir que o projeto seja executado conforme as especificações técnicas, normas de segurança e prazos definidos. Para o chefe do Setor de Infraestrutura Física, Rodrigo Kuhn, gerenciar um contrato de uma obra de R$ 274 milhões é um grande desafio. “Como contratante, nossa responsabilidade vai muito além de liberar pagamentos. Desde o início, temos a missão de garantir que todas as condições contratuais sejam cumpridas, especialmente o cronograma da obra. Isso envolve reuniões regulares, relatórios de progresso e, muitas vezes, a necessidade de tomar medidas rápidas para contornar imprevistos”, afirma.

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Compensação ambiental e sustentabilidade

A retirada de árvores, necessária para a execução da obra, foi devidamente autorizada pela Secretaria de Qualidade Ambiental (SQA). Como contrapartida, está em andamento o projeto “Juntos Podemos Mudar o Mundo”, que reforça o compromisso do Hospital Escola com a sustentabilidade e com a educação ambiental.

Por meio da iniciativa, o HE realiza a distribuição mensal de cerca de 50 mudas de árvores nativas e frutíferas a pacientes que recebem alta hospitalar. As mudas são fornecidas pelo Centro Agropecuário da Palma da UFPel e entregues aos pacientes antes da alta, incentivando o plantio e a consciência ambiental. Com isso, o HE-UFPel alia a responsabilidade legal de compensação ambiental ao compromisso institucional com a promoção da sustentabilidade e do cuidado com o meio ambiente.

Um novo capítulo para o Hospital Escola

A construção da sede própria do HE-UFPel é aguardada há décadas pela comunidade acadêmica e pelos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, o Hospital Escola funciona em uma estrutura locada e com serviços descentralizados em diferentes pontos da cidade, o que impõe desafios logísticos e limitações operacionais para a assistência, o ensino e a gestão.

Mesmo diante dessas restrições, o hospital consegue prestar atendimentos de média e alta complexidade, sendo referência em diversas especialidades e mantendo-se como importante campo de prática para os cursos de graduação e pós-graduação na área da saúde da UFPel. Com o novo complexo, será possível reunir todos os serviços em um só espaço, qualificando o cuidado ao paciente, otimizando recursos e ampliando a integração entre assistência, ensino, pesquisa e extensão, pilares de um hospital universitário. Para Ricardo Peter, Gerente istrativo do HE-UFPel, o novo Hospital Escola simboliza um marco histórico: “É a concretização de um planejamento estratégico construído a muitas mãos, com responsabilidade e visão de futuro. Cada avanço reafirma nosso compromisso com uma estrutura pública de saúde mais eficiente, integrada e orientada para oferecer excelência no atendimento aos usuários do SUS”.

Impacto social e regional

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Mais do que uma obra física, o novo Hospital Escola representa um investimento direto na qualidade de vida da população da região sul do Rio Grande do Sul. Como unidade de saúde com atendimento exclusivo pelo SUS, o HE-UFPel atua de forma gratuita e com base em princípios públicos, promovendo atenção humanizada, formação crítica e técnica de profissionais, além de produzir conhecimento científico voltado às necessidades da sociedade.

Segundo o superintendente do hospital, professor Tiago Collares, o novo Hospital Escola representa muito mais que uma estrutura moderna: “É um compromisso inabalável com a responsabilidade social que temos para com Pelotas e região. Temos consciência que assumimos a missão de oferecer atendimento de excelência, formação qualificada de profissionais e pesquisa inovadora. Para transformar esta missão em realidade, uma gestão com energia, determinação e visão de futuro é imprescindível”, afirma.

“Estamos mobilizando toda a nossa equipe com foco e vigor, pois sabemos que só com trabalho incansável e comprometido poderemos superar desafios e seguir em frente, rumo ao hospital que nossa comunidade merece. Neste caminho, contamos com o apoio decisivo do Governo Federal, cujo investimento, através do PAC, foi crucial para alavancar este projeto transformador. E, acima de tudo, reconhecemos e agradecemos o apoio constante da sociedade de Pelotas e região – é a confiança, a cobrança justa e o incentivo de cada cidadão, o que fortalecem nossa determinação diária. Juntos, com gestão ágil, apoio institucional e o coração da comunidade, estamos construindo não apenas um novo hospital, mas um legado de saúde, esperança e desenvolvimento para as gerações futuras”, completa Tiago Collares.

Entorno

Toda obra de grande porte gera impactos para a comunidade vizinha, especialmente nos estágios iniciais, com movimentação de solo, barulho e mudanças no entorno. Entretanto, o HE-UFPel acredita que os benefícios a médio e longo prazo serão imensamente superiores: um hospital universitário completo, público, gratuito e de excelência. O novo complexo qualificará aquela região da cidade, que tem potencial para se tornar, em breve, o “Vale da Saúde” — um polo de referência em cuidado, ciência e desenvolvimento sustentável.

Sobre o HE-UFPel

O HE-UFPel faz parte da Rede Ebserh desde 2014. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, istra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.

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por Clarice Becker com revisão de Vanda Laurentino

Foto: Mariana Duarte

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